Nesta obra,
escrita em 1897, Denis amplia a nossa concepção da vida, demonstrando que somos
seres imortais. Inicia fazendo uma avaliação das crenças e descrenças ao longo
dos séculos. Em seguida, faz um estudo dos mais profundos temas: Deus, o
Universo, a vida, a morte, a reencarnação e outros. E, após uma exposição
detalhada do mundo espiritual, finaliza demonstrando o objetivo maior do
Espiritismo, que é a elevação moral do ser humano
Primeira Parte
Crenças e Negações
1 As Religiões - A Doutrina
Secreta
Quando se lança um golpe de vista
sobre o passado, quando se evoca a recordação das religiões desaparecidas, das
crenças extintas, apodera-se de nós uma espécie de vertigem ante o aspecto das
sinuosidades percorridas pelo pensamento humano. Lenta é sua marcha. Parece, a
princípio, comprazer-se nas criptas sombrias da Índia, nos templos subterrâneos
do Egito, nas catacumbas de Roma, na meia-luz das catedrais; parece preferir os
lugares escuros à atmosfera pesada das escolas, o silêncio dos claustros às
claridades do céu, aos livres espaços, em uma palavra, ao estudo da Natureza.
Um primeiro exame, uma comparação
superficial das crenças e das superstições do passado conduz inevitavelmente à
dúvida. Mas, levantando-se o véu exterior e brilhante que ocultava às massas os
grandes mistérios, penetrando-se nos santuários da idéia religiosa, achamo-nos
em presença de um fato de alcance considerável. As formas materiais, as
cerimônias extravagantes dos cultos tinham por fim chocar a imaginação do povo.
Por trás desses véus, as religiões antigas apareciam sob aspecto diverso,
revestiam caráter grave e elevado, simultaneamente científico e filosófico. Seu
ensino era duplo: exterior e público de um lado, interior e secreto de outro,
e, neste último caso, reservado somente aos iniciados. Conseguiu-se, não há
muito, reconstituir esse ensino secreto, após pacientes estudos e numerosas
descobertas epigráficas.[i]
Desde então, dissiparam-se a obscuridade e a confusão que reinavam nas questões
religiosas; com a luz, fez-se a harmonia. Adquiriu-se a prova de que todos os
ensinos religiosos do passado se ligam, porque, em sua base, se encontra uma só
e mesma doutrina, transmitida de idade em idade a uma série ininterrupta de
sábios e pensadores.
Todas as grandes religiões tiveram
duas faces, uma aparente, outra oculta. Está nesta o espírito, naquela a forma
ou a letra. Debaixo do símbolo material, dissimula-se o sentido profundo. O
Bramanismo, na Índia, o Hermetismo, no Egito, o Politeísmo grego, o próprio
Cristianismo, em sua origem, apresentam esse duplo aspecto. Julgá-las pela face
exterior e vulgar é o mesmo que apreciar o valor moral de um homem pelos trajes.
Para conhecê-las é preciso penetrar o pensamento íntimo que lhes inspira e
motiva a existência; cumpre desprender do selo dos mitos e dogmas o princípio
gerador que lhes comunica a força e a vida. Descobre-se, então, a doutrina
única, superior, imutável, de que as religiões humanas não são mais que
adaptações imperfeitas e transitórias, proporcionadas às necessidades dos
tempos e dos meios.
Em nossa época, muitos fazem uma
concepção do Universo, uma idéia da verdade, absolutamente exterior e material.
A ciência moderna, em suas investigações, tem-se limitado a acumular o maior
número de fatos e, depois, a deduzir daí as suas leis. Obteve, assim,
maravilhosos resultados, porém, por tal preço, ficar-lhe-á sempre inacessível o
conhecimento dos princípios superiores e das causas primitivas. As próprias
causas secundárias escapam-lhe. O domínio invisível da vida é mais vasto do que
aquele que é atingido pelos nossos sentidos: lá reinam essas causas de que
somente vemos os efeitos.
Na antiguidade tinham outra maneira
de ver, e um proceder muito diferente. Os sábios do Oriente e da Grécia não
desdenhavam observar a natureza exterior, porém era sobretudo no estudo da
alma, de suas potências íntimas, que descobriam os princípios eternos. Para
eles, a alma era como um livro em que se inscrevem, em caracteres misteriosos,
todas as realidades e todas as leis. Pela concentração de suas faculdades, pelo
estudo profundo e meditativo de si mesmos, elevaram-se até à Causa sem causa,
até ao princípio de que derivam os seres e as coisas. As leis inatas da inteligência
explicavam-lhes a harmonia e a ordem da Natureza, assim como o estudo da alma
lhes dava a chave dos problemas da vida.
A alma, acreditavam, colocada entre
dois mundos, o visível e o oculto, o material e o espiritual, observando-os,
penetrando em ambos, é o instrumento supremo do conhecimento. Conforme seu grau
de adiantamento ou de pureza, reflete, com maior ou menor intensidade, os raios
do foco divino. A razão e a consciência não só guiam nossa apreciação e nossos
atos, mas também são os mais seguros meios para adquirir-se e possuir-se a
verdade.
A tais pesquisas era consagrada a
vida inteira dos iniciados. Não se limitavam, como em nossos dias, a preparar a
mocidade com estudos prematuros, insuficientes, mal dirigidos, para as lutas e
deveres da existência. Os adeptos eram escolhidos, preparados desde a infância
para a carreira que deviam preencher e, depois, levados gradualmente aos
píncaros intelectuais, de onde se pode dominar e julgar a vida. Os princípios
da ciência secreta eram-lhes comunicados numa proporção relativa ao
desenvolvimento das suas inteligências e qualidades morais. A iniciação era uma
refundição completa do caráter, um acordar das faculdades latentes da alma. Somente
quando tinha sabido extinguir em si o fogo das paixões, comprimir os desejos
impuros, orientar os impulsos do seu ser para o Bem e para o Belo, é que o
adepto participava dos grandes mistérios. Obtinha, então, certos poderes sobre
a Natureza, e comunicava-se com as potências ocultas do Universo.
Não deixam subsistir dúvida alguma
sobre tal ponto os testemunhos da História a respeito de Apolônio de Tiana e de
Simão, o Mago, bem como os fatos, pretensamente miraculosos, levados a efeito
por Moisés e pelo Cristo. Os iniciados conheciam os segredos das forças fluídicas
e magnéticas. Esse domínio, pouco familiar aos sábios dos nossos dias, a quem
se afiguram inexplicáveis os fenômenos do sonambulismo e da sugestão, no meio
dos quais se debatem impotentes em conciliá-los com teorias preconcebidas,[ii]
esse domínio, a ciência oriental dos santuários havia explorado, e estava
possuidora de todas as suas chaves. Nele encontrava meios de ação
incompreensíveis para o vulgo, mas facilmente explicáveis pelos fenômenos do
Espiritismo. Em suas experiências fisiológicas, a ciência contemporânea chegou
ao pórtico desse mundo oculto conhecido dos antigos e regido por leis exatas.
Ainda bem perto está o dia em que a força dos acontecimentos e o exemplo dos
audaciosos constrangê-la-ão a tal. Reconhecerá, então, que nada há aí de
sobrenatural, mas, ao contrário, uma face ignorada da Natureza, uma
manifestação das forças sutis, um aspecto novo da vida que enche o infinito.
Se, do domínio dos fatos, passarmos
ao dos princípios, teremos de esboçar desde logo as grandes linhas da doutrina
secreta. Ao ver desta, a vida não é mais que a evolução, no tempo e no espaço,
do Espírito, única realidade permanente. A matéria é sua expressão inferior,
sua forma variável. O Ser por excelência, fonte de todos os seres, é Deus,
simultaneamente triplo e uno – essência, substância e vida –, em que se resume
todo o Universo. Daí o deísmo trinitário que, da Índia e do Egito, passou,
desfigurando-se, para a doutrina cristã. Esta, dos três elementos do Ser, fez
as pessoas. A alma humana, parcela da grande alma, é imortal. Progride e sobe
para o seu autor através de existências numerosas, alternativamente terrestres
e espirituais, por um aperfeiçoamento contínuo. Em suas encarnações, constitui
ela o homem, cuja natureza ternária – o corpo, o perispírito e a alma –, centros
correspondentes da sensação, sentimento e conhecimento, torna-se um microcosmo
ou pequeno mundo, imagem reduzida do macrocosmo ou Grande-Todo. Eis por que
podemos encontrar Deus no mais profundo do nosso ser, interrogando a nós mesmos
na solidão, estudando e desenvolvendo as nossas faculdades latentes, a nossa
razão e consciência. Tem duas faces a vida universal: a involução ou descida do
Espírito à matéria para a criação individual, e a evolução ou ascensão gradual,
na cadeia das existências, para a Unidade divina.
Prendia-se a esta filosofia um feixe
inteiro de ciências: a Ciência dos Números ou Matemáticas Sagradas, a Teogonia,
a Cosmogonia, a Psicologia e a Física. Nelas, os métodos indutivo e experimental
combinavam-se e serviam-se reciprocamente de verificação, formando, assim, um
todo imponente, um edifício de proporções harmônicas.
Este ensino abria ao pensamento
perspectivas suscetíveis de causarem vertigem aos espíritos mal preparados, e
por isso era somente reservado aos fortes. Se, por verem o infinito, as almas
débeis ficam perturbadas e desvairadas, as valentes fortificam-se e medram. É
no conhecimento das leis superiores que estas vão beber a fé esclarecida, a
confiança no futuro, a consolação na desgraça. Tal conhecimento produz benevolência
para com os fracos, para com todos esses que se agitam ainda nos círculos inferiores
da existência, vítimas das paixões e da ignorância; inspira tolerância para com
todas as crenças. O iniciado sabia unir-se a todos e orar com todos. Honrava
Brahma na Índia, Osíris em Mênfis, Júpiter na Olímpia, como pálidas imagens da
Potência Suprema, diretora das almas e dos mundos. É assim que a verdadeira
religião se eleva acima de todas as crenças e a nenhuma maldiz.
O ensino dos santuários produziu
homens realmente prodigiosos pela elevação de vistas e pelo valor das obras
realizadas, uma elite de pensadores e de homens de ação, cujos nomes se encontram
em todas as páginas da História. Daí saíram os grandes reformadores, os
fundadores de religiões, os ardentes propagandistas: Krishna, Zoroastro,
Hermes, Moisés, Pitágoras, Platão e Jesus; todos os que têm posto ao alcance
das multidões as verdades sublimes que fazem sua superioridade. Lançaram aos
ventos a semente que fecunda as almas, promulgaram a lei moral, imutável, sempre
e em toda parte semelhante a si mesma. Mas, não souberam os discípulos guardar
intacta a herança dos mestres. Mortos estes, os seus ensinos ficaram
desnaturados e desfigurados por alterações sucessivas. A mediocridade dos
homens não era apta a perceber as coisas do espírito e bem depressa as
religiões perderam a sua simplicidade e pureza primitivas. As verdades que
tinham sido ensinadas foram sufocadas sob os pormenores de uma interpretação
grosseira e material. Abusou-se dos símbolos para chocar a imaginação dos
crentes e, muito breve, a idéia máter ficou sepultada e esquecida sob eles. A
verdade é comparável às gotas de chuva que oscilam na extremidade de um ramo.
Enquanto aí ficam suspensas, brilham como puros diamantes aos raios do Sol;
desde, porém, que tocam o chão, confundem-se com todas as impurezas. O que nos
vem de cima mancha-se ao contacto terrestre. Até mesmo ao seio dos templos
levou o homem as suas concupiscências e misérias morais. Por isso, em cada
religião, o erro, este apanágio da Terra, mistura-se com a verdade, este bem
dos céus.
Pergunta-se algumas vezes se a
religião é necessária. A religião (do latim religare, ligar, unir), bem compreendida,
deveria ser um laço que prendesse os homens entre si, unindo-os por um mesmo
pensamento ao princípio superior das coisas. Há na alma um sentimento natural
que a arrasta para um ideal de perfeição em que se identificam o Bem e a
Justiça. Este sentimento, o mais nobre que poderemos experimentar, se fosse
esclarecido pela Ciência, fortificado pela razão, apoiado na liberdade de
consciência, viria a ser o móvel de grandes e generosas ações; mas, manchado,
falseado, materializado, tornou-se, muitas vezes, pelas inquietações da teocracia,
um instrumento de dominação egoística.
A religião é necessária e
indestrutível porque se baseia na própria natureza do ser humano, do qual ela
resume e exprime as aspirações elevadas. É, igualmente, a expressão das leis
eternas e, sob este ponto de vista, tende a confundir-se com a filosofia, fazendo
com que esta passe do domínio da teoria ao da execução, tornando-se vivaz e
ativa.
Mas, para exercer uma influência
salutar, para voltar a ser um incitante de progresso e elevação, a religião
deve despojar-se dos disfarces com que se revestiu através dos séculos. Não são
os seus elementos primordiais que devem desaparecer, mas, sim, as formas
exteriores, os mitos obscuros, o culto, as cerimônias. Cumpre evitar confundir
coisas tão dessemelhantes. A verdadeira religião é um sentimento; é no coração
humano, e não nas formas ou manifestações exteriores, que está o melhor templo
do Eterno. A verdadeira religião não poderia ser encerrada dentro de regras e
ritos acanhados; não necessita de sacerdotes nem de fórmulas nem de imagens.
Pouco se inquieta com simulacros e
modos de adorar; só julga os dogmas por sua influência sobre o aperfeiçoamento
das sociedades. Abraça todos os cultos, todos os sacerdócios, eleva-se bastante
e diz-lhes: A Verdade ainda está muito acima!
Entretanto, deve-se compreender que
nem todos os homens se acham em vias de atingir esses píncaros intelectuais.
Eis por que a tolerância e a benevolência são coisas que se impõem. Se, por um
lado, o dever convida-nos a desprender os bons espíritos dos aspectos vulgares
da religião, por outro, é preciso nos abstermos de lançar a pedra às almas
sofredoras, lacrimosas, incapazes de assimilar noções abstratas, mas que
encontram arrimo e conforto na sua cândida fé.
Verifica-se, porém, que, de dia para
dia, diminui o número dos crentes sinceros. A idéia de Deus, outrora simples e
grande nas almas, foi desnaturada pelo temor do inferno e perdeu seu poder. Na
impossibilidade de se elevarem até ao absoluto, certos homens acreditaram ser
necessário adaptar à sua forma e medida tudo o que queriam conceber. Foi assim
que rebaixaram Deus ao nível deles próprios, atribuindo-lhe as suas paixões e
fraquezas, amesquinhando a Natureza e o Universo, e, sob o prisma da
ignorância, decompondo em cores diversas os argênteos raios da verdade. As
claras noções da religião natural foram obscurecidas a bel-prazer. A ficção e a
fantasia engendraram o erro e este, preso ao dogma, ergueu-se como um obstáculo
no meio do caminho. A luz ficou velada para aqueles que se acreditavam seus
depositários e as trevas, com que pretendiam envolver os outros, fizeram-se em
si próprios e ao seu redor. Os dogmas perverteram o critério religioso, e o
interesse de casta falseou o senso moral. Daí um acervo de superstições, de
abusos e práticas idólatras, cujo espetáculo lançou tantos homens na negação.
A reação, porém, anuncia-se. As religiões,
imobilizadas em seus dogmas como as múmias em suas faixas, agora agonizam,
abafadas em seus invólucros materiais, enquanto tudo marcha e evolve em torno
delas. Perderam quase toda a influência sobre os costumes, sobre a vida social,
e estão destinadas a perecer. Mas, como todas as coisas, as religiões só morrem
para renascer. A idéia que os homens fazem da Verdade modifica-se e dilata com
o decorrer dos tempos. Eis por que as religiões, manifestações temporárias,
vistas parciais da eterna Verdade, tendem a transformar-se desde que já tenham
cumprido a sua tarefa, e não mais correspondam aos progressos e às necessidades
da Humanidade. À medida que esta caminha, são precisas novas concepções, um
ideal mais elevado, e isso só poderá ser encontrado nas descobertas da Ciência,
nas intuições crescentes do pensamento. Chegamos a uma época da História em que
as religiões encanecidas aluem-se por suas bases, época em que se prepara uma
renovação filosófica e social. O progresso material e intelectual desafia o
progresso moral. Na profundeza das almas agita-se um mundo de aspirações, que
faz esforços por tomar forma e aparecer à vida. O sentimento e a razão, essas
duas grandes forças imperecíveis como o Espírito humano, de que são atributos,
forças hostis até hoje e que perturbavam a sociedade com os seus conflitos,
semeando por toda parte a discórdia, a confusão e o ódio, tendem, finalmente, a
se conciliarem. A religião deve perder seu caráter dogmático e sacerdotal para
tornar-se científica; a ciência libertar-se-á dos baixios materialistas para
esclarecer-se com um raio divino. Surgirá uma doutrina, idealista em suas
tendências, positiva e experimental em seu método, apoiada sobre fatos
inegáveis. Sistemas opostos na aparência, filosofias contraditórias e inimigas,
o Espiritismo e o Naturalismo, entre outras, acharão, afinal, um terreno de
reconciliação. Síntese poderosa, ela abraçará e ligará todas as concepções
variadas do mundo e da vida, raios dispersos, faces variadas da Verdade.
Será a ressurreição, sob forma mais ampla e a
todos acessível, dessa doutrina que o passado conheceu, será o aparecimento da
religião natural que renascerá simples, sem cultos nem altares. Cada pai será
sacerdote em sua família, ensinará e dará o exemplo. A religião passará para os
atos, para o desejo ardente do bem; o holocausto será o sacrifício de nossas
paixões, o aperfeiçoamento do Espírito humano. Tal é a doutrina superior,
definitiva, universal, no seio da qual serão absorvidas, como os rios pelo oceano,
todas as religiões passageiras, contraditórias, causas freqüentes de dissidência
e dilaceração para a Humanidade